domingo, 24 de abril de 2011

comportamento

Começo citando Leonardo Boff, em texto postado em seu blog, sobre o massacre na escola de Realengo (RJ). Diz ele: “A vida cura a vida e o amor supera em nós o ódio que mata”.

Já nos acostumamos com o fato de que a vida urbana tem dessas coisas: violência, intolerância, gente enlouquecida, gente com medo, gente que mata. Diante dessa realidade, nosso teólogo mais sábio e querido nos abençoa com essas palavras... a vida cura a vida... Então a vida está enferma? Carece de cura? Interessante pensar que o remédio para nossos males está na mesma substância que os produziu. Como picada de cobra, que só pode ser tratada com soro feito a partir de seu próprio veneno. Se nossa sociedade adoeceu, é exatamente em seu interior – nas relações humanas que ela produz – que podemos encontrar as respostas e soluções para o cotidiano caótico que nos habituamos a viver.
A questão colocada por Boff é a seguinte: somos nós, sociedade bárbara e desequilibrada, quem produz os “loucos” que nos atormentam. Um rapaz que, aos vinte e poucos anos, resolve vingar as agressões que sofreu quando criança no ambiente escolar, matando alunos da mesma escola em que estudava, e depois dá um tiro na própria cabeça só podia estar “louco” – é o que todos nós concluímos. E nos perguntamos: como se produz esse tipo de loucura? Como evitar que pessoas inocentes paguem por isso? De quem é a responsabilidade de deter os comportamentos destrutivos de indivíduos psicologicamente perturbados?
Patologias que podem levar a tragédias como essa, embora tenham origem em fatores relacionados à história pessoal do indivíduo e nas relações familiares, não podem ser analisadas separadamente do contexto social, até mesmo porque atualmente a sociedade globalizada, os meios de comunicação de massa, as redes virtuais e, sobretudo, a escola passaram a exercer o papel de educadores que antes era restrito aos pais. O psiquismo humano é resultado da interação de vários fatores, entre eles os valores apregoados e difundidos no interior da sociedade em que vivemos – em sua cultura, em suas relações sociais, em seus meios de produção, nas suas produções intelectuais, nos seus jogos políticos e nas mensagens veiculadas por seus meios de comunicação de massa. Ou seja, o sistema político-social e econômico como um todo pode produzir pessoas mentalmente sadias, ou pode ser uma máquina de fazer neuroses e psicopatologias. Além disso, pode ainda tratar como normalidade o que comumente seria tratado como patologia na clínica psiquiátrica. Assim, vários comportamentos que podem ser considerados doentios tornaram-se genéricos ou “normais” nas sociedades contemporâneas, como o isolamento, a frieza, a incapacidade de viver relações afetivas, o medo, a desconfiança permanente, a ansiedade, a depressão, a atitude de “descartabilidade” nas relações humanas (no mundo dominado pelo consumo, troca-se de pessoas, como se trocam de objetos, roupas, etc). Nesse contexto, a sensação de opressão é marcante. É também presente a dor da injustiça e das desigualdades. Estigmas, preconceitos e o desrespeito às individualidades, somados à desagregação dos valores familiares, contribuem para o aumento de comportamentos intolerantes e vários tipos de violência, inclusive nas escolas, como o bullying.
Em meio a tudo isso, nem todos conseguem manter a sanidade mental e emocional. Basta voltar aos estudos de Freud e de outros psicanalistas para compreender que os instintos de morte e agressão fazem parte de nossa constituição psíquica. Temos todos dentro de nós o impulso para a vida e, simultaneamente, tendências agressivas e auto-destrutivas.
Porém, é Freud quem também indica que a civilidade, a educação, a arte, as relações afetivas, a ciência e toda forma de criação e produção humanas nos ajudam a controlar tais instintos e aflorar o princípio de vida: o que há de melhor e mais construtivo em cada um de nós. Felizmente, muitos de nós aprendemos, ao longo da formação de nossa consciência e personalidade, a frear nossas tendências destrutivas e a gerar vida.
Por isso, no momento em que reacendem discussões sobre o combate ao tipo de violência que ocorreu no Rio de Janeiro, somos obrigados a admitir que a questão é bem mais complexa. Restrição à venda de armas, mais segurança policial nas escolas, criação de esquemas de atendimento em saúde mental, treinamento de professores para lidarem com a agressividade em sala de aula, enfim, tudo isso não basta. É preciso reconhecer que ajudamos a inventar esse sistema que nos aprisiona e que somente mudanças em suas bases estruturais e nos modos como se dão suas relações humanas poderão nos indicar os caminhos para a paz.

Por Ana Melo
http://www.atibaianews.com.br/ver_col.php?artigo=lista&idArt=777&idCol=595&nomeCol=Ana%20Melo&cat=Colunistas

Um comentário:

Urso Malvado disse...

Algo que não foi contemplado no belo texto de Ana Melo é que vivemos em um pesadelo kafkiano que exaure os recursos de um planeta inteiro para beneficiar um grupo extremamente restrito de organismos e pessoas supra-nacionais.
Sobrevivemos em um mundo formatado por pessoas e organismos odiosos ao final da II Guerra Mundial. Existimos em um sistema que se mantém espoliando nações inteiras; dizimando etnias, culturas; matando grupamentos humanos inteiros pela fome, à bala, por doenças, por falta de saneamento.
Um modo de produção que prospera estupidificando e embrutecendo populações inteiras para apenas garantir que o fluxo de riquezas jamais mude de direção.
De que outra maneira seria possível transformar professores, em meros operários de sala de aula que precisam espremer sessenta horas semanais de trabalho em seu já exíguo tempo para unicamente garantir um nível de vida somente remediado?
Raros são os professores que, hoje em dia, têm bagagem cultural e formação humana capaz de transmitir valores as próximas gerações. Dói-nos saber quee tais raridades não se devem a um currículo louvável no ensino superior, mas unicamente a seus esforços individuais.